sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

O MUNDO DOS PRÉ-CANÔNICOS


Por: Paulo Brabo (www.baciadasalmas.com.br)

No princípio era o Verbo, mas não havia sido colocado por escrito.

O que Adão, Noé, Matusalém, Abraão, Isaque, Jacó, José e seus onze irmãos e todos os hebreus que saíram do Egito têm em comum é que nenhum desses jamais leu uma única palavra da Escritura. Se, como sustentam tradições antigas e novas opiniões, os cinco livros atribuídos a Moisés não foram escritos por ele, as únicas palavras da Bíblia que o próprio Moisés leu foram os dez mandamentos gravados na terrível caligrafia de Deus.

O óbvio precisa às vezes ser expresso claramente: todos os autores da Bíblia viveram com o Deus da Bíblia e sem a Bíblia. Dito de outra forma, todos os livros que compõem o cânone foram escritos muito antes que o conceito de cânone passasse pela cabeça de alguém.

No sentido em que falamos aqui um cânone é uma coletânea de documentos religiosos que recebem em determinado momento a chancela irrevogável de autorizados e inspirados. Por definição, quando um cânone é fechado nada mais pode abri-lo. A coleção de documentos é vista como um todo indivisível, completo e finalizado – um bloco de verdade monolítica que cabe ao homem contemplar, mas não desbastar ou ampliar. É como nasceu a Bíblia.

A mentalidade que gerou o cânone precisa ser analisada mais tarde. Bastará por enquanto sabermos que judeus e cristãos viveram por séculos sem um coletânea fechada de textos sagrados; os cristãos desenvolveram o seu entre o segundo e o quarto século, os judeus a partir da revolta de Bar Kochba.

Não foi um processo isento de controvérsia. Parte do problema, como veremos, está em que os proponentes do cânone sonharam estabelecer unidade onde parece haver apenas diversidade. Uma coisa é sustentar que determinado número de textos tenha sido escrito sob inspiração divina; outra coisa, muito distinta, é afirmar que o agrupamento desses textos independentes compõe uma unidade lógica e compreensível e de autoridade peculiar.

A evidência interna e externa sugere que a visão de mundo de judeus e cristãos pré-canônicos (incluindo os autores da Bíblia) era muito diferente. Os autores bíblicos não só não tinham como saber como não demonstram qualquer evidência sobrenatural de que soubessem quais livros seriam encerrados eventualmente no cânone. O conceito de uma revelação fechada entre duas capas se mostraria totalmente incompreensível para eles (e não apenas porque o livro ainda não havia desbancado comercialmente o rolo de pergaminho).

No mundo pré-canônico as tradições religiosas eram recebidas e tratadas de forma muito mais aberta e fluente. Era um mundo pelo menos tão oral quanto escrito, e o caráter da palavra falada permeava tanto a propagação quanto a interpretação dos oráculos divinos. As mesmas histórias e tradições eram transmitidas com ênfase muito diversa (compare-se por exemplo os livros de Reis aos livros de Crônicas, ou um evangelho ao outro), sem que isso parecesse implicar em imprecisão ou parcialidade. Não havia um vocabulário verdadeiramente comum e não havia definição prévia de termos.

Alan J. Hauser e Duane F. Watson, na sua introdução a A History Of Biblical Interpretation, apontam com propriedade que “não há indicação de que os autores bíblicos tenham sequer chegado a compreender o conceito de Escritura, certamente não no sentido definido pelas comunidades cristãs nas eras antiga, medieval e moderna. Eles fazem alusão e citam outros documentos e tradições como tendo alguma autoridade, autoridade que pode às vezes ser forte, mas o apelo à autoridade está ligado ao desejo de corroborar o argumento em questão, não de propor a unidade abrangente de toda a Escritura”.

Evidência constrangedora da diferença entre esse mundo e o nosso são os momentos em que os autores bíblicos citam como Escritura inspirada e abalizada documentos e tradições que acabaram sendo barrados na versão final do cânone. Como desconheciam o conceito de um corpo fechado de documentos autorizados, os autores bíblicos sustentam uma visão de “Escritura” que é certamente mais provisória e abrangente do que a nossa. E é sempre a partir dessa visão aberta da autoridade de textos presentes e futuros que eles colocam por escrito, cada um deles, a sua contribuição.

No período pré-canônico não há evidência, na literatura que chegou até nós, do conceito de uma autoridade canônica abrangente e universal que se estendesse até o futuro. Ao contrário, a autoridade que existe parece aplicar-se apenas ao contexto da ocasião imediata e da comunidade em questão, construída sobre uma nova compreensão das tradições consagradas do passado. Mesmo quando se faz referência a uma figura de autoridade como Moisés, a “Lei de Moisés” era a lei como percebida naquele momento particular por aquela comunidade particular.


Quando Paulo escrevia a suas congregações (por exemplo, em 1 Coríntios) sua preocupação predominante era confrontar e resolver os problemas da congregação específica à qual se dirigia, razão pela qual muitos detalhes da discussão escapam-nos à compreensão. É na verdade de se perguntar se Paulo não teria escolhido melhor as suas palavras se tivesse sabido que ao longo de dois milênios suas epístolas receberiam escrutínio microscópico de tantas gerações de intérpretes cristãos.

“Uma autoridade cânonica que se estendesse até o futuro” e “escolher melhor as suas palavras” – aqui, de forma quase casual, Hauser e Watson tocam duas questões que se mostrarão fundamentais no caminho que teremos de percorrer. Em que momento ficou estabelecido como coisa natural que a autoridade dos textos da Bíblia se estenderia indefinidamente no futuro? Quando ficou determinado que as palavras da Bíblia foram escolhidas especificamente por Deus e não pelos seus autores?

A resposta não está na Bíblia.

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